terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Salmo 103 - Um convite irrecusável

 

               Começo esta simples análise de um dos Salmos mais profundos de Davi, relembrando um comentário de Charles Spurgeon sobre o texto e, principalmente, sobre o tempo em que Davi provavelmente estava vivendo: - Um salmo de Davi. Sem dúvida por Davi; está no seu próprio estilo quando no seu auge, e devemos atribuí-lo a seus anos mais maduros, quando ele sentia mais a preciosidade do perdão, por ter um senso mais aguçado do pecado, do que quando mais moço. Seu senso claro da fragilidade da vida indica estar nos anos de mais fraqueza, assim como a própria imparcialidade de seu senso de louvor na gratidão”.
              Quando inicio a leitura deste salmo, me encanto com a forma profunda que Davi orienta a sua própria alma: “Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e tudo o que há em mim bendiga o seu santo nome. Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e não te esqueças de nenhum de seus benefícios” (v.1-2). A forma como ele fala não traz a nós somente uma característica do modo convencional hebraico de uma pessoa se dirigir ao seu íntimo, de falar consigo mesmo, mas uma primeira instrução para a nossa vida aqui na terra enquanto peregrinos que somos, instrução sábia e exuberante, para que utilizemos de todas as nossas faculdades para louvor e honra ao Senhor.
  

                    Imediatamente após esta declaração, Davi relembra e enumera motivos pelos quais nosso ser deve exaltar ao Senhor. Para mim, tais colocações são amostras de como Davi já estava familiarizado com o tratar do Senhor em sua vida. Frutos do relacionamento íntimo com o Senhor Deus até aquele momento. Davi canta de forma poderosa que Deus “é quem perdoa todas as nossas iniquidades, que sara todas as nossas enfermidades (v.3); que redime a nossa vida da ruina; que nos coroa de favores e misericórdia (v.4); que sacia de bens a nossa boca, de sorte que nos rejuvenesce como a águia (v.5); faz justiça e juízo aos oprimidos (v.6); faz conhecidos os Seus caminhos e as suas Obras (v.7); Ele é compassivo e clemente, tardio em irar-se e grande em misericórdia (v.8); não nos reprova para sempre e nem pra sempre reterá sua (v.9); não nos trata conforme as nossas iniquidades e nem nos recompensa conforme os nossos pecados (v.10); engrandece as suas misericórdias sobre os que o temem (v.11); afasta de nós as nossas transgressões (v.12); tem misericórdias dos que o temem (v.13); conhece a nossa condição e sabe que somos pó (v.14);
                    Após todas estas verdades que com toda a certeza foram validadas por ele, Davi canta a pequenez do homem e a brevidade de seu tempo sobre a terra. Ele canta que “os dias homem são como a erva” (v.15), como uma flor que é bonita por um tempo, assim é o homem. Assim como esta mesma flor que a seu tempo floresce e logo após murcha e cai, assim é o homem, “logo perece e o seu lugar já não é mais conhecido” (v.16), independente de quão grande, útil, influente, rico e poderoso tenha sido.
                   Devemos nos lembrar que somos frágeis mas que o cuidado de Deus é eterno, suas misericórdias se renovam a cada manhã. Aproveito para deixar o seguinte alerta: Nossas fraquezas não devem ser usadas como desculpa para pecarmos, mesmo tendo a consciência de que Deus, através de Sua misericórdia, levará tudo em consideração e terá compaixão de nós muitas vezes, pois Ele conhece a nossa condição. Davi em todo o texto fala daquele que “teme ao Senhor”. Deus não se deixa escarnecer!
                  Davi passa a encerrar o salmo com um convite maravilhosa a toda criação, animada e inanimada, para se unir em adoração e exaltação ao Senhor, pois “Ele estabeleceu nos céus o seu trono; e o Seu reino dominará sobre todos” (v.19), louvando-o como os anjos o fazem, em obediência pura (v.20), executando os Seus desejos (v.21).
                O salmo se encerra assim como começou, com uma admoestação a nós, para nos prostrarmos sempre em reverência e respeito ao Senhor da Glória, que nos deu todas as coisas boas, apesar de sermos seres humanos pobres, débeis, imperfeitos e caídos, feitos do pó.
                As palavras de Davi neste Salmo, promovem uma importante reflexão sobre o nosso relacionamento com Deus. Destacando vários aspectos da misericórdia do Senhor e dá ênfase para o fato de não sermos merecedores de tamanha bondade e ainda assim a recebermos. Assim, devemos pensar em como o nosso condicionamento espiritual está diante das misericórdias eternas que estão por toda parte e revelam o quanto Deus nos ama. Muitas coisas acontecem quando entendemos e praticamos a adoração e louvor ao Senhor com tudo o que há em nós. Não é só quando grandes milagres e livramentos acontecem que devemos louvá-lo. Devemos adorá-lo e louvá-lo também nos dias bons, sempre com fé de que Ele aplica Seus atributos em nosso favor, apesar das nossas limitações!
                 Que a nossa voz seja ouvida e nossa vida contemplada em todo tempo, exaltando e bendizendo ao Deus Todo Poderoso, que nos cumula de benefícios mil e não nos desampara na hora da angústia. Aceitemos este convite hoje e nos aprofundemos neste relacionamento com Deus Pai e vivamos uma prévia do céu nesta terra.

             

 

 


segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

O descanso está virando um espantalho




O descanso é essencial para o funcionamento saudável do nosso corpo e da nossa mente, além disso, é uma disciplina espiritual importante para a nossa fé. No entanto, ele tem virado um espantalho.

           Eu nunca vi um espantalho, pelo menos não pessoalmente. Contudo, estou familiarizada com a ideia. Espantalhos são colocados em plantações para simular a presença de uma pessoa. Ao ver o objeto, as aves evitam a área. É como se fosse um ser humano, mas não é. Acho que temos vivido um pouco disso com o descanso. O que é descanso? Muitos podem dizer que descanso é dormir, outros afirmar que é um repouso, um momento de lazer, um estado de paz. Descanso é o ato de descansar, tirar o cansaço. Parece que a definição é um pouco mais fácil do que a prática. Cresci na igreja, mas eu tinha mais de 25 anos quando escutei alguém falar sobre descanso através de uma visão religiosa. Até aquele momento, para mim, descanso era só o “não trabalho”. Ver séries ou ir à praia, conversar com amigos ou ficar um pouco sozinha, ler um bom livro ou dormir: tudo isso era descanso.
        Conteúdos sobre descanso foram surgindo e, de repente, ver série não era mais descanso e a leitura, dependendo do livro, também não era descanso. Ficar sozinha só poderia ser chamado de descanso se fosse “solitude” e, se o grupo de amigos não passasse no crivo evangélico, talvez eu também não estivesse descansando ali. Um monte de gente começou a falar sobre a importância do descanso, mas ninguém me dizia o que é descanso. Desconstruíram a minha ideia sobre descanso, mas não colocaram nada no lugar.
        Eu sei que as coisas simples da vida, muitas vezes, exigem explicações elaboradas para que entendamos o seu verdadeiro significado. Tente explicar o amor de marido e mulher para quem nunca amou dessa forma ou uma cor para pessoas cegas e perceba como, algumas vezes, a simplicidade de algo pode exigir um extenso vocabulário. No entanto, defendo que esse não é o caso do descanso.
Gênesis 2 é uma prova disso: “No sétimo dia Deus já havia concluído a obra que realizara, e nesse dia descansou.” (Gn 2.2, NVI)
        Nós não sabemos o que Deus fez para descansar, Deus não diz o que é esse tal descanso. Tudo o que sabemos é que ele parou o seu processo de criação e descansou. O descanso foi uma pausa. Simples assim. Não devemos parar de falar sobre a necessidade do descanso e sobre sua importância, mas talvez precisemos torná-lo mais real e prático. O descanso parece estar virando o espantalho que um dia o “chamado” já foi. Todo mundo queria saber qual era o seu chamado, mas parecia que ninguém entendia de fato o que era chamado. Quem explicava parecia complicar mais ainda. Pessoas saíram do emprego para viver o chamado, outras compraram cursos e ainda outras acharam que precisavam deixar até mesmo o seu cônjuge para trás para viver “a vontade de Deus”. Porém, poucas delas entenderam que o chamado poderia ter sido vivido onde elas estavam inicialmente. É claro que viver aquilo que Deus quer que vivamos exige renúncias e mudanças. A Bíblia mostra isso. Mas, às vezes, a complexidade com a qual tratamos coisas simples nos faz dar voltas ou tomar decisões enganosas. O “chamado” virou um produto. O mesmo parece estar acontecendo com o descanso.
           Livros, cursos, planners e cultos temáticos tentam nos dizer o que é descanso. Nunca falamos tanto sobre o tema e nunca estivemos tão cansados. Uma meta-análise feita em 2023 examinou 91 estudos feitos em três continentes e concluiu que um em cada cinco adultos no mundo sofre de fadiga generalizada que dura até seis meses. Uma outra pesquisa realizada pelo instituto YouGov (2022) concluiu que um em cada oito britânicos se sente cansado “o tempo todo” e 25% estão exaustos na maior parte do tempo1. Qual foi a última vez que você passou mais de uma semana sem dizer “estou cansado”?
          Encontrando o espantalho
           Nós transformamos o descanso em produto. Um produto nasce a partir de uma dor ou carência de um determinado público. Para solucionar um problema, devemos primeiro saber a sua causa. As pessoas não estão mais conseguindo descansar. Por quê? O cansaço excessivo pode ser sinal de uma dificuldade financeira real, ou da tentativa de triunfar e fazer dar certo um plano pessoal de vida. Quase sempre, o cansaço excessivo é um claro sinal de que estamos querendo controlar a nossa vida e estamos esquecendo de confiar em Deus. A razão do cansaço fica esquecida e, como quase tudo na vida, ficamos apenas na superfície do nosso problemas, apenas aquilo que podemos ver. Sem tratar as raízes, remediamos o cansaço que dará as caras novamente quando virarmos na próxima esquina. Usamos planners, cursos, retiros e consultorias tentando nos fazer entender como descansar.


             Não é que a forma não seja importante, ela é. Não estou pregando um “descanso de qualquer jeito!”. A forma é interessante, mas precisamos tomar cuidado para que a forma não tome o lugar da razão. É possível que uma pessoa tenha uma prática excelente de descanso, mas continue cansada porque a razão do seu descanso não é verdadeira. O descanso que não está alicerçado em Deus é apenas alívio. O descanso é um espantalho quando fazemos da forma uma prioridade. O descanso também é um espantalho quando ele é usado para esconder problemas mais profundos da nossa alma. Separar um dia para o descanso é essencial, mas também é importante ter um dia para comunhão, um dia para o perdão, um dia para a generosidade. Não podemos deixar que o descanso nos coloque em uma torre de marfim. Às vezes, o desconforto é o início do descanso.

         Também precisamos reconhecer que algumas formas possuem suas limitações. A simplicidade do descanso o torna possível para todas as pessoas. Pobre ou rico, homem ou mulher, empregados ou desempregados. Seria muito bom que todas as pessoas tivessem acesso a um planner legal que ajudasse a organizar as tarefas diárias, mas isso não acontece no mundo real. No mundo real, as pessoas pegam três ônibus para chegar em casa e o único descanso do fim de semana é a leitura bíblica e o filme que a emissora local de TV irá exibir. No mundo real, tem gente que descansa dormindo em um hotel nas Filipinas, enquanto outros dormem na rede no interior de Pernambuco. Um descanso não é melhor que o outro, não deve haver comparação. O descanso — quando é descanso mesmo — aponta para Deus, nas Filipinas ou em Pernambuco.
          O mito do descanso 
          Precisamos tomar muito cuidado com as formas enganosas que uma falsa teologia ou um falso deus podem tomar. Rolo o feed e vejo uma xícara transparente em cima de uma mesinha de canto de madeira de formato irregular. Dentro da xícara, chá, ao lado dela, uma revista conceitual. Na legenda, um texto fala sobre a importância de aproveitar o dia. Rolo um pouco mais o feed e vejo um vídeo. Nele, o influencer amplia o som de cada detalhe [o famoso ASMR] à medida que ele arruma seu apartamento com janelas enormes que dão para uma movimentada metrópole norte-americana. No fim do vídeo, ele acende uma vela e descansa no sofá. É como se fosse um triunfalismo aesthetic — termo em inglês muito utilizado para nos referirmos a conteúdos que trazem uma apreciação maior da beleza e do que está ao nosso redor.
          Parece que essas pessoas nem ao menos ficam cansadas, parece que estão sempre observando o mundo do ângulo certo. Aos sábados, depois de arrumar a casa, mal tenho tempo para sentar porque quase sempre tenho um compromisso marcado com amigos ou com meu namorado. O domingo é o dia do descanso, mas, às vezes, na segunda-feira, é como se eu nem ao menos tivesse tentado descansar. O descanso pleno [enquanto estivermos neste corpo perecível] é um mito. Toda a nossa realidade foi afetada pelo pecado, e o descanso está incluso nesse pacote. “Descansar no Senhor” é muito mais um ato de fé que prepara nosso coração do que um ato físico que relaxa nosso corpo. O “triunfalismo aesthetic” nos passa a falsa noção de que o “descanso” pode estar ao nosso alcance se tivermos muitas plantas, um piso de madeira e cortinas esvoaçantes. O deus do descanso aesthetic é a beleza, mas só há descanso naquele que é verdadeiramente belo.
          É muita informação
           A vida na internet, no entanto, vai muito além do aesthetic. No livro Férias de Fornicação, o pastor e comunicador português Tiago Cavaco escreve: “A internet fez-nos ricos daquela maneira que facilita a nossa perdição […] O nosso problema hoje não é ter; é escolher no muito que temos”. Precisamos ser realistas, não vivemos no Século 18. Aqui e agora, os dias são longos, a maioria das pessoas tem WhatsApp e posta ao menos uma vez no ano nas redes sociais [sendo extremamente otimista]. Além disso, as possibilidades de escolha para a maioria de nós aumentaram de forma significativa. Guardadas as devidas proporções, todos nós temos a opção de morar onde quisermos, de estudar o que quisermos, de ter o que quisermos e de ser quem quisermos ser. Para adicionar a essa conta, agora temos um aparelho que é [como de fosse] parte de nós e precisamos também pensar e selecionar o que fará parte da nossa realidade online. A internet, o mundo moderno e a cultura de produção constante criaram monstros insaciáveis. De tanto ter o que fazer, não sabemos o que fazer porque as muitas opções impossibilitam uma escolha sem fadiga.


          A abundância, que vem com a conexão possibilitada pela internet, tem nos deixado desconectados do Criador e, consequentemente, de nós mesmos. No meio de tantas opções, não conseguimos escolher. Constantemente me pego pensando no que vou fazer antes de dormir. Série ou filme? Livro ou Kindle? Ou só rolo o feed mesmo? Porque não consigo escolher, ou porque a escolha é difícil, até mesmo o meu “descanso” gera fadiga. Parece que precisamos estar sempre entretidos e até os últimos minutos dos nossos dias precisam ser preenchidos. Mais uma vez, criamos um produto que nos vende aquilo que só o Senhor pode nos dar. 
          Descansar em comunidade
         Não há descanso sem comunhão com Deus e sem comunidade. Eu estava rolando o feed do X [antigo Twitter] quando me deparei com um texto em que a autora falava que havia decidido voltar para a sua antiga cidade porque percebeu que precisava de comunidade. Naquele momento, algo mudou dentro de mim. Fazia quatro anos que morava em outra cidade e decidi voltar para a minha cidade natal para criar raízes intencionalmente. Eu estava em uma cidade que tem uma melhor estrutura e mais segurança, mas eu não tinha uma comunidade ali. Estrutura e segurança são coisas extremamente importantes, mas elas não deveriam ser maiores do que a comunidade. Vivemos em um mundo praticamente sem barreiras, onde as pessoas viajam milhares de quilômetros buscando condições melhores de vida. Muitos passarão a trabalhar 12 horas por dia para ter a vida que deseja, outros decidirão viver 8 meses em frio extremo, mas pouquíssimos darão um passo para trás para buscar comunidade.
          Comunidades sempre foram essenciais para o cristianismo, mas parece que o individualismo nos afetou mais do que pensávamos. Na edição mais recente de Ultimato – Doenças que fazem sofrer também os que creemUriel Heckert escreve: “Ao longo da história",os cristãos e suas instituições sempre atuaram na promoção da vida e da saúde [...] Os líderes cristãos foram reconhecidos e prestigiados como ‘cura d’almas’ antes mesmo do surgimento das modernas profissões de ajuda”. Em uma era de pessoas cansadas, o descanso pode ser uma forma de evangelização. Em 2024, cuidar de pessoas cansadas é promover vida e saúde.
          Em 1 Coríntios 11, Paulo ordena que os coríntios esperem uns pelos outros para comerem juntos. A ação conjunta da comunidade importa. A igreja deveria ser o primeiro lugar a nos dizer que precisamos descansar. As quatro paredes da igreja sempre foram um refúgio que ia de encontro ao mal da época. Na igreja, deveríamos ter tempo para sentar e olhar no olho, pedir uma xícara de café e conversar. Depois de uma pandemia de solidão, deveríamos ter uma explosão de comunhão, mas muitos nem se quer retornaram às igrejas porque lá não encontram mais uma comunidade. Nós somos seres comunitários, não vivemos bem sozinhos. Se as igrejas não se fazem lugares de raízes e cultivo de relacionamentos, muitos encontrarão isso em outras formas de comunidade [fora da igreja].
          Desde que voltei para a minha cidade, tenho procurado intencionalmente construir pontes e fortalecer pontes já construídas. Percebi que dividir as minhas angústias e escutar a angústia dos irmãos me ajuda a entender que somos mais parecidos do que pensamos e nossos problemas têm solução. Descansamos melhor quando dividimos o peso que carregamos com aqueles que caminham ao nosso lado e quando entendemos que a nossa maior conquista não foi realizada por nós, mas por Cristo na cruz.
         O descanso vem do Senhor
          Jonas não entendeu isso. O livro de Jonas começa com Senhor pedindo para que o profeta fosse pregar para Nínive, capital do Império Assírio, grande inimigo de Israel. Jonas por sua vez, toma o caminho errado e embarca para o lado contrário dentro de um navio. Ali, fazendo exatamente o oposto do que Deus tinha dito, ele dormiu profundamente (Jn 1.5). Depois de uma longa viagem, Jonas estava tentando descansar, no entanto o sono profundo foi interrompido por uma tempestade enviada pelo próprio Deus. O descanso de Jonas foi, na verdade, um alívio momentâneo. Depois de ser jogado ao mar, como você bem deve saber, o profeta foi engolido por um peixe gigante. Ali, ele passou 3 longos dias até ser vomitado para fora após afirmar para Deus que o obedeceria. Ao chegar em Nínive, tamanha era a aversão de Jonas pela missão, que sua pregação aos ninivitas foi extremamente curta: “Nínive será destruída daqui a quarenta dias” (Jn 3.4, ARA). Não teve empatia, não teve olho no olho. Em situações normais, ninguém se converteria a essa mensagem fria, mas o Deus que enviou a mensagem era maior do que o profeta que a proclamou.
         Ao ver o arrependimento dos ninivitas, Jonas se enfureceu. “Por isso é que fugi depressa para Társis, pois sabia que és Deus compassivo e misericordioso, paciente e cheio de amor, e que te arrependes do mal” (Jn 4.2, ARA). A reação de Jonas é tão absurda que, por duas vezes, Deus pergunta: “É razoável essa tua ira?”. Ao sair da cidade, Jonas encontra um lugar para descansar e é aqui que precisamos de atenção. Enquanto descansava, Deus fez crescer uma planta acima do profeta (Jn 4.6). No entanto, na manhã seguinte, Deus enviou uma lagarta que atacou a planta. Jonas acordou sendo importunado pelo sol e pelo vento. Diante da sua desobediência, seus descansos foram apenas alívios.
        Jonas é um profeta suspeito e os seus momentos de descanso são, na verdade, uma fuga da realidade. Com seu coração longe do Criador, ele não se alegrava com a salvação de pecadores ou com os grandes feitos de Deus. Jonas queria conforto. O conforto de não ter de ir até os inimigos, de não ter que falar com quem você não gosta ou de não ter de lidar com o problema dos outros. O conforto de dormir e acordar como se nada tivesse acontecido, como se fosse possível fugir de Deus. O descanso para Jonas era um produto, a forma era mais importante que a razão.
       Um pouco antes de Jonas encontramos um outro profeta: Elias. Ele é um dos grandes profetas do Antigo Testamento, mas existe um episódio específico que quero contrastar com a narrativa de Jonas. Depois de um tempo longe de Israel, Elias retorna para enfrentar os profetas de Baal. Era Elias contra 450 homens. Imagine só você frente a frente com 450 homens e afirmando com todas as letras que os venceria. Vale lembrar que esses profetas não eram do tipo monge budista. Eles gritavam e cortavam os seus corpos com facas e lanças (1Re 18.28, ARA). Deve ter sido uma visão e tanto. Cheio de Deus, Elias enfrentou aqueles homens com uma grande fé e Deus respondeu sua oração com graça e força tão tamanhas que o povo de Israel se prostrou e afirmou: “O Senhor é Deus!” (1Re 18.39, ARA). Ao ver seus profetas derrotados, Jezabel se enfureceu com Elias e decretou a sua morte.
        Naquele ponto, o nível de cansaço de Elias já era muito grande. Com a mente e o corpo cansados, o profeta fugiu para salvar a sua própria vida. Muitas vezes, precisamos fugir para resistir. Exausto, Elias pediu a sua própria morte. Note aqui algo muito importante: Elias pediu pela morte depois de um dia exaustivo e um tanto acinzentado pelo cansaço, mas preenchido pela obediência à Deus. Jonas pediu pela morte depois de ver pessoas se convertendo e fazendo a vontade de Deus. Os corações dos dois profetas ocupavam polos extremamente opostos. Ambos queriam descanso, mas só um deles o alcançou. Deitado debaixo de um arbusto, Elias adormeceu. Em certo momento, um anjo o acordou e o pediu para levantar e comer (1Re 19.5). Em um texto meu de 2023 para a UnusMundos, pontuei que essa ordem do anjo nos faz entender que o descanso é ativo e corporificado. Para descansar, Elias faz três coisas que todos nós fazemos todos os dias: levantamos, comemos e dormimos. Não há segredo, não há curso ou mentoria.
       Enquanto Elias dormia, o Senhor preparava a refeição. Depois que comeu e bebeu, Elias voltou a dormir (1Re 19.6). Não há nenhum descanso maior do que este: saber que o nosso sustento e a nossa proteção vêm de Deus. A forma pouco importou para o profeta porque a sua razão era a correta. Pela segunda vez o anjo o acorda, pede para que, novamente, ele levante e coma (mais uma vez o Senhor havia preparado o alimento) “porque a viagem será muito longa” (1Re 19.7). Elias não passa o resto da vida ali descansando. Pelo contrário, ele continua sua exaustiva caminhada de profeta, ele continua a anunciar a justiça do Reino e a graça de um Deus que nos pede para descansar.
       Enquanto Jonas usava o seu descanso como uma distração, uma fuga da realidade e do próprio Deus, era no descanso que Elias recentralizava as suas prioridades e escutava a voz de Deus. O descanso de Jonas era um espantalho, o descanso de Elias apontava para Deus.


Mariana Albuquerque, jornalista e redatora. Trabalha com comunicação em mídias sociais e internet desde 2012. Coordenadora de projetos da Christianity Today em Português e gerente de projetos da iniciativa Global da Christianity Today.