Eu nunca vi um espantalho, pelo menos não pessoalmente. Contudo, estou familiarizada com a ideia. Espantalhos são colocados em plantações para simular a presença de uma pessoa. Ao ver o objeto, as aves evitam a área. É como se fosse um ser humano, mas não é. Acho que temos vivido um pouco disso com o descanso. O que é descanso? Muitos podem dizer que descanso é dormir, outros afirmar que é um repouso, um momento de lazer, um estado de paz. Descanso é o ato de descansar, tirar o cansaço. Parece que a definição é um pouco mais fácil do que a prática. Cresci na igreja, mas eu tinha mais de 25 anos quando escutei alguém falar sobre descanso através de uma visão religiosa. Até aquele momento, para mim, descanso era só o “não trabalho”. Ver séries ou ir à praia, conversar com amigos ou ficar um pouco sozinha, ler um bom livro ou dormir: tudo isso era descanso.
Conteúdos sobre descanso foram surgindo e, de repente, ver série não era mais descanso e a leitura, dependendo do livro, também não era descanso. Ficar sozinha só poderia ser chamado de descanso se fosse “solitude” e, se o grupo de amigos não passasse no crivo evangélico, talvez eu também não estivesse descansando ali. Um monte de gente começou a falar sobre a importância do descanso, mas ninguém me dizia o que é descanso. Desconstruíram a minha ideia sobre descanso, mas não colocaram nada no lugar.
Eu sei que as coisas simples da vida, muitas vezes, exigem explicações elaboradas para que entendamos o seu verdadeiro significado. Tente explicar o amor de marido e mulher para quem nunca amou dessa forma ou uma cor para pessoas cegas e perceba como, algumas vezes, a simplicidade de algo pode exigir um extenso vocabulário. No entanto, defendo que esse não é o caso do descanso.
Gênesis 2 é uma prova disso: “No sétimo dia Deus já havia concluído a obra que realizara, e nesse dia descansou.” (Gn 2.2, NVI)
Nós não sabemos o que Deus fez para descansar, Deus não diz o que é esse tal descanso. Tudo o que sabemos é que ele parou o seu processo de criação e descansou. O descanso foi uma pausa. Simples assim. Não devemos parar de falar sobre a necessidade do descanso e sobre sua importância, mas talvez precisemos torná-lo mais real e prático. O descanso parece estar virando o espantalho que um dia o “chamado” já foi. Todo mundo queria saber qual era o seu chamado, mas parecia que ninguém entendia de fato o que era chamado. Quem explicava parecia complicar mais ainda. Pessoas saíram do emprego para viver o chamado, outras compraram cursos e ainda outras acharam que precisavam deixar até mesmo o seu cônjuge para trás para viver “a vontade de Deus”. Porém, poucas delas entenderam que o chamado poderia ter sido vivido onde elas estavam inicialmente. É claro que viver aquilo que Deus quer que vivamos exige renúncias e mudanças. A Bíblia mostra isso. Mas, às vezes, a complexidade com a qual tratamos coisas simples nos faz dar voltas ou tomar decisões enganosas. O “chamado” virou um produto. O mesmo parece estar acontecendo com o descanso.
Livros, cursos, planners e cultos temáticos tentam nos dizer o que é descanso. Nunca falamos tanto sobre o tema e nunca estivemos tão cansados. Uma meta-análise feita em 2023 examinou 91 estudos feitos em três continentes e concluiu que um em cada cinco adultos no mundo sofre de fadiga generalizada que dura até seis meses. Uma outra pesquisa realizada pelo instituto YouGov (2022) concluiu que um em cada oito britânicos se sente cansado “o tempo todo” e 25% estão exaustos na maior parte do tempo1. Qual foi a última vez que você passou mais de uma semana sem dizer “estou cansado”?
Também precisamos reconhecer que algumas formas possuem suas limitações. A simplicidade do descanso o torna possível para todas as pessoas. Pobre ou rico, homem ou mulher, empregados ou desempregados. Seria muito bom que todas as pessoas tivessem acesso a um planner legal que ajudasse a organizar as tarefas diárias, mas isso não acontece no mundo real. No mundo real, as pessoas pegam três ônibus para chegar em casa e o único descanso do fim de semana é a leitura bíblica e o filme que a emissora local de TV irá exibir. No mundo real, tem gente que descansa dormindo em um hotel nas Filipinas, enquanto outros dormem na rede no interior de Pernambuco. Um descanso não é melhor que o outro, não deve haver comparação. O descanso — quando é descanso mesmo — aponta para Deus, nas Filipinas ou em Pernambuco.
Parece que essas pessoas nem ao menos ficam cansadas, parece que estão sempre observando o mundo do ângulo certo. Aos sábados, depois de arrumar a casa, mal tenho tempo para sentar porque quase sempre tenho um compromisso marcado com amigos ou com meu namorado. O domingo é o dia do descanso, mas, às vezes, na segunda-feira, é como se eu nem ao menos tivesse tentado descansar. O descanso pleno [enquanto estivermos neste corpo perecível] é um mito. Toda a nossa realidade foi afetada pelo pecado, e o descanso está incluso nesse pacote. “Descansar no Senhor” é muito mais um ato de fé que prepara nosso coração do que um ato físico que relaxa nosso corpo. O “triunfalismo aesthetic” nos passa a falsa noção de que o “descanso” pode estar ao nosso alcance se tivermos muitas plantas, um piso de madeira e cortinas esvoaçantes. O deus do descanso aesthetic é a beleza, mas só há descanso naquele que é verdadeiramente belo.
Desde que voltei para a minha cidade, tenho procurado intencionalmente construir pontes e fortalecer pontes já construídas. Percebi que dividir as minhas angústias e escutar a angústia dos irmãos me ajuda a entender que somos mais parecidos do que pensamos e nossos problemas têm solução. Descansamos melhor quando dividimos o peso que carregamos com aqueles que caminham ao nosso lado e quando entendemos que a nossa maior conquista não foi realizada por nós, mas por Cristo na cruz.
Ao ver o arrependimento dos ninivitas, Jonas se enfureceu. “Por isso é que fugi depressa para Társis, pois sabia que és Deus compassivo e misericordioso, paciente e cheio de amor, e que te arrependes do mal” (Jn 4.2, ARA). A reação de Jonas é tão absurda que, por duas vezes, Deus pergunta: “É razoável essa tua ira?”. Ao sair da cidade, Jonas encontra um lugar para descansar e é aqui que precisamos de atenção. Enquanto descansava, Deus fez crescer uma planta acima do profeta (Jn 4.6). No entanto, na manhã seguinte, Deus enviou uma lagarta que atacou a planta. Jonas acordou sendo importunado pelo sol e pelo vento. Diante da sua desobediência, seus descansos foram apenas alívios.
Jonas é um profeta suspeito e os seus momentos de descanso são, na verdade, uma fuga da realidade. Com seu coração longe do Criador, ele não se alegrava com a salvação de pecadores ou com os grandes feitos de Deus. Jonas queria conforto. O conforto de não ter de ir até os inimigos, de não ter que falar com quem você não gosta ou de não ter de lidar com o problema dos outros. O conforto de dormir e acordar como se nada tivesse acontecido, como se fosse possível fugir de Deus. O descanso para Jonas era um produto, a forma era mais importante que a razão.
Um pouco antes de Jonas encontramos um outro profeta: Elias. Ele é um dos grandes profetas do Antigo Testamento, mas existe um episódio específico que quero contrastar com a narrativa de Jonas. Depois de um tempo longe de Israel, Elias retorna para enfrentar os profetas de Baal. Era Elias contra 450 homens. Imagine só você frente a frente com 450 homens e afirmando com todas as letras que os venceria. Vale lembrar que esses profetas não eram do tipo monge budista. Eles gritavam e cortavam os seus corpos com facas e lanças (1Re 18.28, ARA). Deve ter sido uma visão e tanto. Cheio de Deus, Elias enfrentou aqueles homens com uma grande fé e Deus respondeu sua oração com graça e força tão tamanhas que o povo de Israel se prostrou e afirmou: “O Senhor é Deus!” (1Re 18.39, ARA). Ao ver seus profetas derrotados, Jezabel se enfureceu com Elias e decretou a sua morte.
Naquele ponto, o nível de cansaço de Elias já era muito grande. Com a mente e o corpo cansados, o profeta fugiu para salvar a sua própria vida. Muitas vezes, precisamos fugir para resistir. Exausto, Elias pediu a sua própria morte. Note aqui algo muito importante: Elias pediu pela morte depois de um dia exaustivo e um tanto acinzentado pelo cansaço, mas preenchido pela obediência à Deus. Jonas pediu pela morte depois de ver pessoas se convertendo e fazendo a vontade de Deus. Os corações dos dois profetas ocupavam polos extremamente opostos. Ambos queriam descanso, mas só um deles o alcançou. Deitado debaixo de um arbusto, Elias adormeceu. Em certo momento, um anjo o acordou e o pediu para levantar e comer (1Re 19.5). Em um texto meu de 2023 para a UnusMundos, pontuei que essa ordem do anjo nos faz entender que o descanso é ativo e corporificado. Para descansar, Elias faz três coisas que todos nós fazemos todos os dias: levantamos, comemos e dormimos. Não há segredo, não há curso ou mentoria.
Enquanto Elias dormia, o Senhor preparava a refeição. Depois que comeu e bebeu, Elias voltou a dormir (1Re 19.6). Não há nenhum descanso maior do que este: saber que o nosso sustento e a nossa proteção vêm de Deus. A forma pouco importou para o profeta porque a sua razão era a correta. Pela segunda vez o anjo o acorda, pede para que, novamente, ele levante e coma (mais uma vez o Senhor havia preparado o alimento) “porque a viagem será muito longa” (1Re 19.7). Elias não passa o resto da vida ali descansando. Pelo contrário, ele continua sua exaustiva caminhada de profeta, ele continua a anunciar a justiça do Reino e a graça de um Deus que nos pede para descansar.
Enquanto Jonas usava o seu descanso como uma distração, uma fuga da realidade e do próprio Deus, era no descanso que Elias recentralizava as suas prioridades e escutava a voz de Deus. O descanso de Jonas era um espantalho, o descanso de Elias apontava para Deus.
Mariana Albuquerque, jornalista e redatora. Trabalha com comunicação em mídias sociais e internet desde 2012. Coordenadora de projetos da Christianity Today em Português e gerente de projetos da iniciativa Global da Christianity Today.